Perder equipamento, abandonar tralha na parede, ser resgatado, temporal e chuva gelada na cabeça, barraca levada pelo vento, perder mais equipamento, ser expulso de abrigo, horas sem dormir, e no meio disso tudo, descobrir que seu parceiro de escalada é literalmente maluco… Tem dias que se deve ficar na cama!
Conheci o Peter através do UK Climbing, um dos mais populares sites de escalada do Reino Unido, quando eu procurava alguém para escalar o Ben Nevis no inverno. Naquela época, eu estava começando a aprender a escalar e o Ben seria uma montanha ideal porque oferece centenas de vias de diferentes dificuldades e a oportunidade de se chegar ao topo da montanha mais alta do Reino Unido. Ah, e a gente desce andando do outro lado!
O Peter se apresentou como tendo mais de 20 anos de escalada, e capaz de guiar um alto grau em gelo. Essa seria a minha terceira escalada em gelo, e também uma ótima oportunidade de aprender com alguém mais experiente.
Ele me pegou no aeroporto de Inverness, fizemos uma breve parada no supermercado e logo pegamos a estrada em direção a Fort Williams. Fiquei meio intrigado com a extrema velocidade com a qual ele passou pelos corredores do supermercado jogando as coisas pra dentro do carrinho com a comida que iríamos precisar... O Peter tinha uns quarenta e tantos anos, porte de esportista, e era um tanto hiperativo. Agitado, falava rápido e falava muito. O tempo todo foi me contando de suas últimas aventuras, e vez por outra me fazia perguntas técnicas, como que testando meus conhecimentos, analisando se eu iria conseguir “acompanhá-lo”, ou ajudá-lo durante alguma situação complicada que poderíamos encontrar.
Nós acampamos na beira de um riacho, às margens da estrada, e no dia seguinte, debaixo de chuva, pegamos a trilha para a base do Ben Nevis, onde montaríamos acampamento. As mochilas estavam bem pesadas, e levamos cerca de duas horas até chegarmos à área de acampamento. Estávamos ao lado do abrigo do Clube Alpino Escocês, um simpático abrigo com paredes de pedra, literalmente no meio do nada.
Quando acabamos de montar a barraca já estava escuro e continuava a chover. Fui até o abrigo saudar nossos vizinhos - a atmosfera é típica de outras acomodações de montanha, calma, silenciosa, lareira rolando, alguns cozinhando, outros lendo... Fazer “festa” ou algazarra chega a ser desrespeito. Reconheci um colega do ginásio de escalada em Londres, o Michael, que estava lendo em um canto. Eu mal termino de cumprimentá-lo e o Peter entra de supetão, falando alto, e causando um certo alvoroço. Ele foi direto até o Michael, fazendo comentários e piadas sobre o livro que ele tinha nas mãos e meio que pediu-pra-ver-já-foi-vendo-e-tirando o livro das mãos do cara! Abrupto e meio inconveniente, pensando estar sendo simpático e engraçado, o Peter em poucos minutos conseguiu alienar a galera toda. Com o clima ficando cada minuto mais estranho, forcei nossa volta para a barraca.
O dia amanheceu limpo, sem nuvens, e nenhum vento! Estávamos imersos em uma penumbra azulada, como que dentro de uma igreja cujos vitrais filtravam os raios solares dando um ar fantasmagórico ao ambiente. O Peter sugeriu começarmos com uma via que o croqui dava como 4o grau escocês, nada muito comprometedor, e considerando meu nível na época, dificuldade ideal para eu revisar o bê-á-bá e observá-lo em ação. Animados, em pouco tempo subíamos a inclinada rampa que dá acesso a base da via e ao nos aproximar encontramos uma grande área coberta por debris de avalanche. O Peter disse que aquilo era mau sinal e escolheu outra via, de dificuldade similar, que subia por um sistema de gullies até a crista da Tower Ridge, de onde continuaríamos até o cume.
Fazia calor e o gelo estava pouco solidificado, a neve húmida e mal compacta deixava a aproximação bastante perigosa. Íamos chutando neve e criando degraus que se desfaziam conforme movíamos o peso para o próximo. O Peter começou a escalada e assim que deu a primeira picada, virou-se pra mim e reclamou que o gelo estava péssimo e que deveríamos encontrar outra coisa pra escalar. Eu estava ficando impaciente e pedi para tentar. Ao me passar a tralha ele se descuidou e deixou cair um parafuso de gelo, que deslizou em câmera lenta, dezenas de metros pra abaixo do precipício. Olhei fixamente pro Peter por alguns segundos, sem expressar emoção. “Pelo menos o parafuso era dele”. Pego o resto das coisas, me coloco na ponta da corda e o Peter agora menciona que esqueceu o ATC na barraca... A essa altura eu estava totalmente focado, na minha cabeça, eu ia subir aquilo nem que tivesse que levar o Peter nas costas. Ignorando todos os sinais, dei meu feio pra ele, e comecei a escalar com a idéia de puxá-lo através de um nó.
De fato, o gelo estava péssimo. Impossível fixar a piqueta com segurança, tudo estava desmoronando e derretendo. Usei a rocha exposta para me apoiar e logo cheguei ao final da primeira cordada. O Peter se juntou a mim, elogiou a liderança e se posicionou na seg de novo. Perguntei quem não quer nada, se ele não gostaria de guiar a próxima, “- Oh no dude! You are doing great mate!”. E lá fui eu novamente, pra dentro de outro estreito gully. Escalada fácil e exposta, fiz nova parada em uma fenda. Ao chegar o Peter começou com um monólogo do quanto nós estávamos ficando altos e expostos, ele parecia cada vez mais nervoso, e aquilo gradualmente começou a me incomodar - a via era legal, o tempo estava "perfeito", tudo sob controle, e o Peter em uma ansiedade inexplicável.
A próxima cordada consistia em cruzar uma rampa que dava a acesso a um novo sistema de gullies. Dessa vez meu parceiro se animou a guiar. Ele levou uma eternidade para proteger e cruzar a tal rampa, e logo sumiu atrás de uma rocha.
Algum tempo depois ele sinalizou pra eu seguir. Assim que contornei o boulder notei que ele havia terminado a cordada pelo menos 20 metros antes do necessário, e fazia a seg um único camalote .05! Mencionei o fato e tudo o que recebi foi uma cara do tipo “quem é você para saber fazer uma parada?”.
O resto da escalada foi tranquila, chegamos a crista e paramos pra comer e aproveitar o visual. O Peter disse que conhecia o terreno, que estávamos perto do cume, e ele iria guiar a próxima. De onde estávamos, eu apenas via os primeiros trinta metros do trajeto porque a crista desaparecia atrás de um grande boulder. Nossa corda estava bem enrolada porque durante toda a subida eu fiz a segurança no mosquetão. Assim que o Peter começou a travessia da crista eu vi um nó na da corda, e pedi a ele que parasse no pequeno platô a sua frente para resolver o problema. Eu o alertei mais de uma vez que ele tinha que parar e desfazer o nó, mas mesmo confirmando com a cabeça ele seguiu em frente e desapareceu atrás do boulder.
Eu repassei esse momento várias vezes na minha cabeça, e não consigo entender. Eu gritei várias vezes para o Peter voltar, pois o nó iria enroscar em algo, e foi exatamente isso o que aconteceu. A corda enroscou. Continuei gritando, pedindo ao Peter que voltasse alguns metros para liberar a corda, mas o forte vento e a neve que começava a cair dificultavam a comunicação. Vários minutos se passaram e nada acontecia, a corda não ia nem voltava. De repente ouço gritos, alguém apavorado pedindo ajuda. Era o Peter! Eu gritava de volta tentando entender o que estava acontecendo, mas depois de alguns gritos ele parou, mais nenhuma resposta. Um silêncio perturbador. Notei alguns escaladores próximos, também tentando comunicação, mas ninguém se entendia. Eu gritava perguntando se alguém conseguia ver meu parceiro, mas era impossível entender coisa alguma.
Avaliei minha situação, eu estava ancorado a um imenso bloco, na beira do precipício, e a única mochila com nossos equipamentos estava com meu parceiro, que não respondia aos meus chamados. Considerando o frio e seu estado nervoso, imaginei que o Peter poderia ter entrado em choque, e mesmo que eu conseguisse chegar até ele, depois de mais de uma hora naquela temperatura, ele provavelmente precisaria de auxílio médico. Escalar até o Peter, considerando minha (in)experiência na época seria arriscado e poderia apenas colocar mais alguém em perigo.
Comecei a revirar os bolsos do anorak e por sorte encontrei meu celular. Liguei para a policia, informei a situação, e onde estávamos. O atendente disse que me manteria informado sobre o andamento do resgate, mas alguém estaria a caminho muito em breve.
Cerca de quarenta minutos depois escuto um forte ronco, um ponto amarelo cresce rapidamente no horizonte e logo está sobrevoando minha cabeça. O helicóptero passa por mim e segue adiante, imagino que para buscar o Peter.
Um tempo depois volta e perde altura, alinhando-se à minha vista. O operador à porta da aeronave faz sinal para eu me desancorar. O helicóptero ganha altura novamente, e rapidamente um resgatista é baixado até mim, através de um longo cabo de aço. Minha cabeça gira num turbilhão de pensamentos, era como se aquilo não estivesse acontecendo comigo. Com precisão milimétrica o resgatista se aproximou e passa uma faixa ao meu redor da minha cintura. Corto minha corda, uma sensação de impotência me enche a alma, meu estômago embrulha e algumas lágrimas escorrem. Em poucos segundos somos içados, rodando cada vez mais alto até alcançarmos a porta da aeronave. “Isso não pode estar acontecendo”, eu penso. Foi a primeira vez durante todo o dia em que eu fiquei realmente nervoso.
Ao entrar no helicóptero vejo o Peter sentado no canto, inteiro, em perfeito estado. Com cara de bobo, ele me pergunta o que aconteceu. “- Como assim?!” – respondo espantado, “– Você não parou para resolver o nó, e desapareceu. Depois saiu gritando desesperadamente por ajuda, sem responder a qualquer chamado, e você me pergunta o que aconteceu?! Eu que pergunto que porra aconteceu?!”. O resgatista fez sinal pra todo mundo se acalmar, o barulho do helicóptero não permitia discussão. Alguns minutos depois pousávamos na base do resgate de Fort Williams. Um policial fez algumas poucas perguntas sobre o ocorrido e, ‘passar bem, obrigado’. Nenhum boletim de ocorrência, nenhuma investigação, nenhuma conta, nada.
Eu estava prevendo uma conta gigantesca da operação de resgate, eu atacando o Peter com a piqueta, discutindo quem iria pagar a conta, mas felizmente o Reino Unido é um dos poucos países onde o resgate ainda é financiado pelo inteiramente pelo governo, por mais estúpida que seja a razão.
O policial nos deu carona de volta até o estacionamento do parque, e o Peter voltou a sua forma original, falando sem parar e fazendo piadas, como se nada houvesse acontecido. Eu, por outro lado, era a expressão da minha miséria, me sentia um fracasso total.
Devia ser por volta de quatro da tarde e estávamos em jejum a horas, o Peter, como bom e velho inglês, sugeriu de antes de pegarmos a trilha irmos até um pub, comer e enxugar as mágoas. Conversamos muito tentando compreender o ocorrido, mas sem solução. Na cabeça do Peter tudo havia sido produto de má sorte, nada de mais. Ele não se sentia em nada responsável pelo acontecido. Meu mau humor ia ficando pior a cada desculpa furada.
Pegamos a inclinada trilha ao final do dia. O Peter continuava com o falatório, chegou a ponto de parar um grupo que passava por nós para contar sua mais nova história e ver se eles não concordavam que ser resgatado não era lá grande coisa! Obviamente, eles não concordaram com o maluco e isso apenas fazia crescer meus pensamentos homicidas. “Não tem como ficar pior”, pensei eu. Então escureceu, e uma forte chuva gelada começou a cair.
Mais de duas horas miseráveis até chegarmos ao acampamento. A idéia de ficar na mesma barraca que o Peter não me agradava, então resolvi ir até o abrigo desanuviar.
O lugar estava cheio, e a notícia do resgate era o assunto da noite. Foi então que as peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar. Um dos caras que estavam no helicóptero se chamava Ben, e ele estava sentado bem ali! Ele me disse que ele era um socorrista voluntário e estava escalando por perto quando ouviu os gritos do Peter. Ele deixou seu parceiro e todo o equipamento no alto da montanha para ir ajudar e quando o encontrou, o Peter estava desencordado, andando maluco pela crista da montanha, sem fazer muito sentido. Tudo indica que quando a corda enroscou, o Peter sem gastar um minuto pra entender o que acontecia, entrou em desespero. Bateu um píton na rocha, ancorou a corda, e saiu andando à “procura de ajuda”.
O Ben compartilhava minha frustração e espanto com todo o ocorrido e queria saber detalhes sobre o Peter, qualquer coisa que lhe ajudasse a entender o que se passava na cabeça de um cara, pra ele se desencordar, abandonar o parceiro, e sair sozinho gritando por socorro quando tecnicamente, ninguém estava em perigo. Segundo o Ben, nós ainda tínhamos umas 2 horas de escalada exposta pela frente, enquanto que o Peter achava que já estávamos próximos do cume! No auge dessa conversa o Peter entra nervosamente no abrigo, trazendo mais boas noticias, ele não conseguia achar nossa barraca! “A barraca deve ter sido levada pelo vento!”, diz ele, incrédulo! Coloco meu anorak e volto pra tempestade tentar encontrar algum sinal das nossas coisas na escuridão.
Chovia torrencialmente e mal conseguíamos ficar em pé, tal a força do vento. O Peter o tempo todo a meu lado, resmungando que isso nunca havia acontecido com ele, que ele sequer imaginava como a barraca havia ido embora, que ele estava cansado, etc. Acho que após horas de perrengue a ficha dele estava finalmente caindo e agora ele estava sofrendo um “colapso nervoso”. Eu também estava no meu limite, após uma longa e inaudível suspirada eu pedi a ele que “segurasse a onda”, e me ajudasse a continuar procurando nossas coisas para que pudéssemos sair da tempestade o mais rápido possível.
Depois de uma hora de busca conseguimos achar a maior parte das coisas que estavam espalhadas pelas rochas e pelo leito do rio. A barraca foi pousar no meio da corredeira, uma caixa de aveia se abriu e tudo estava ensopado e melado. Enfio tudo na mochila, e volto pro abrigo. “Pronto”, pensei eu, “agora realmente não tem mesmo como ficar pior”. Assim que o Peter chegou o Ben chamou nós dois para uma conversa “privada” na antessala, onde passou um sermão bíblico no Peter, repreendendo-o pela total irresponsabilidade de se desencordar, abandonar parceiro, mobilizar todo um resgate, e sequer mostrar o mínimo de agradecimento a todos os que estavam no abrigo e de alguma forma ajudaram a coordenar a operação. Pra encerrar, ele disse que lamentava muito mas como nós não havíamos reservado espaço no refúgio, não podíamos ficar e teríamos que descer.
...
Não sei se por conta da tempestade ou simples cansaço, mas eu pouco enxergava a trilha. A headlamp simplesmente não conseguia penetrar a tempestade. O riacho havia subido a tal nível que cobria toda a trilha e tivemos que cortar pelo mato por horas. Chegamos congelados e ensopados no carro, eram 3 da manhã e estávamos nos fudendo a mais de 20 horas, uma boa parte sob forte chuva. O Peter ligou o aquecedor do carro e ficamos tentando gerar algum calor, em silêncio, esperávamos o sol nascer.
Pedi ao Peter para me deixar em Inverness, minha passagem de volta era somente dali a dois dias mas considerando-se as circunstâncias, seria saudável que cada um fosse pra seu lado. Durante a volta foi minha vez de ter uma conversa honesta e ao final ele se desculpou, admitiu que havia perdido o controle, e até prometeu pagar pelo equipamento abandonado... promessas, promessas...
Eu fiquei doído por semanas. Lembrar do momento em que eu cortei a corda e fui resgatado me colocava pra baixo de tal forma que é impossível colocar em palavras. Demorei semanas para absorver a experiência. Ser resgatado significou pra mim uma derrota total e absoluta, e tardei à reconhecer que a culpa de tudo o que havia acontecido foi 100% foi minha. Eu ignorei todos os sinais de que o Peter não era uma boa parceria. Do aeroporto até a base da via, e ainda durante a escalada, eu ignorei uma série de erros e pressentimentos e, na minha sede de cume e falta de vivência, me julguei capaz de resolver o que quer que fosse. Quando finalmente a merda bateu no ventilador, eu não tinha o conhecimento e a experiência necessária para resolver a confusão sozinho. Sad but true.
Eu acredito que na vida nós, e mais ninguém somos responsáveis pelo que nos acontece e demorei muito para conseguir usar essa experiência de maneira positiva.
Ficam abaixo algumas dicas para evitar que você um dia passe por algo parecido:
Conheça seus parceiros e a si mesmo. Não subestime a sorte e capacidade técnica do time. Assuma o pior cenário e tenha certeza que ambos podem lidar com ele.
Reconheça a síndrome do cume e questione seus próprios julgamentos. É clichê mas de fato, a montanha vai estar sempre lá, por mais difícil que seja aceitar.
Aprenda a reconhecer sentimentos e sinais que a "providência" manda em sua direção. Isso exige tempo e experiência. Se algo está parecendo “estranho”, fora de sintonia, questione e aja de acordo.
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